Severance e a alienação do trabalho

Ideia Crítica
3 min readAug 2, 2022

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Homem dentro de um elevador

Em Severance, série lançada este ano pela Apple TV, temos um grupo de pessoas que aceitam trabalhar para uma corporação chamada Lumon sendo submetidas ao processo de “separação”. O processo consiste na implementação de um chip no cérebro que separa as memórias pessoais das memórias de trabalho. Cada vez que sobem o elevador da empresa para cumprirem o expediente de trabalho, a mente dessas pessoas troca as memórias de fora pelas de dentro e vice-versa ao deixarem o escritório. Cada pessoa é então dividida entre “interno” (innie), um Eu do trabalho, e “externo”(outie), um Eu fora do trabalho.
Contando com excelentes atuações e uma ambientação estética muito interessante, a série é uma ótima opção de entretenimento, contudo, ela é também uma porta de entrada para refletirmos sobre um tema ainda mais interessante: a alienação do trabalho.

Segundo Marx, o trabalhador só se sente junto a si quando fora do trabalho e fora de si quando no trabalho. Em seus Manuscritos econômico-filosóficos ele explica esse fenômeno sendo causado pela alienação do trabalho, o estranhamento do trabalhador frente ao produto de seu trabalho. Em Severance vemos isso acontecendo quando os funcionários do setor de refinamento de macrodados executam sua tarefa sem entender sua finalidade, são destituídos de objetividade cumprindo a função como meras máquinas. O trabalho alienado aparece para o funcionário como se o trabalho não lhe pertencesse, mas a outro. Diante disso, o trabalhador se sente livre apenas fora do trabalho realizando funções básicas de sobrevivência, como comer, beber, dormir e procriar. Se sente apenas como um animal, destituído da categoria de ser humano, enquanto no trabalho se sente infeliz e irrealizado, cumpre suas tarefas apenas para satisfazer suas necessidades fora do trabalho.

Nas relações capitalistas, o detentor das condições de trabalho é quem se apropria do produto do trabalho alheio, ele se torna o senhor do trabalho, passando a controlar não só o produto do trabalhador, mas seu ser como um todo. O trabalhador, como mercadoria força de trabalho, é adquirido pelo dono dos meios de produção por um determinado tempo, em que fica sujeito a cumprir com as ordens e disciplinas impostas pela companhia. Em Severance vemos uma forte propaganda ideológica propagada através dos mandamentos e do culto ao fundador da empresa, um sinal dos tempos onde temos bilionários sendo idolatrados como heróis. Mas voltando ao tema, o trabalhador, portanto, ao adentrar seu local de trabalho — assim como os funcionários da Lumon ao subirem pelo elevador — é alienado de seu corpo, de sua produção e de si mesmo. Diante dessa alienação, rebaixamos nossa subjetividade humana e nos separamos como indivíduos da mesma espécie.

Seguindo os passos de Marx, Lukács em sua obra Para uma ontologia do ser social apresenta o problema do estranhamento como oriundo do distanciamento entre o desenvolvimento das capacidades humanas/produtivas e o desenvolvimento da subjetividade humana. No capítulo sobre trabalho estranhado dos seus manuscritos, Marx implica que “a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”. Esse fenômeno de rebaixamento do humano podemos conectar com o conceito de reificação de Lukács em História e consciência de classe — no capitalismo, o homem se torna um simples objeto, o que nos leva a interagir na sociedade como coisas e não como seres humanos. Isso fica evidente todo dia ao olharmos para o mundo concreto, não precisamos assistir uma série de televisão para perceber.

Os processos de alienação, reificação e fetichismo da mercadoria passaram a dominar nossas vidas, nos transformaram em estranhos para nós mesmos e para a sociedade. Portanto, seguindo na linha de Severance, é hora de buscarmos a nossa própria “reintegração”, mas não apenas como unidade individual, mas sim social. A superação da alienação é mais complexa no mundo real, envolve a derrubada de todo sistema econômico cunhado com base na divisão social do trabalho e na propriedade privada. E para que isso seja possível ela deve partir de cada indivíduo até chegar ao coletivo, pois somente uma nova construção subjetiva do ser humano pode nos levar a emancipação e a liberdade. Segundo Lukács em sua Ontologia, “o que caracterizará o movimento de libertação da manipulação em todos os âmbitos da vida é o retorno ao próprio ser social enquanto fundamento irrevogável de toda práxis humana, de toda ideia verdadeira.”

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