O futuro será cyberpunk?

Ideia Crítica
4 min readJul 14, 2022

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cena inicial do filme blade runner
Cena do filme Blade Runner (1982)

A tecnologia se desenvolve em ritmo exponencial enquanto que a nossa qualidade de vida se torna cada vez mais precária. Hoje em dia existem carros autônomos, robôs, realidade virtual, viagens ao espaço, edição genética etc; porém milhares ainda sofrem com a falta de emprego, moradia, comida e dignidade. Essa é a premissa do Cyberpunk: High tech, low life. Criado nos anos 80 a partir de obras como Blade Runner e Neuromancer, o gênero fez sucesso por sua criatividade ficcional e estética futurista, contudo, mais relevante do que isso foi a sua imaginação sobre os problemas que enfrentaremos no futuro. Nas obras de ficção cyberpunk o futuro é retratado como um lugar sombrio, onde a tecnologia ao invés de elevar o nosso potencial humano nos levou à barbárie.
E quanto ao nosso próprio futuro, seria ele cyberpunk? É esse diálogo que quero promover neste texto, trazendo alguns elementos característicos do gênero e o que eles podem nos dizer sobre a nossa realidade.

Nos universos cyberpunks as grandes corporações dominam o mundo, não existem governos, tudo é privatizado. Não é à toa que esse gênero surgiu durante o auge do neoliberalismo nos anos 80 — Reagan e Thatcher ditavam as regras econômicas do mundo incentivando o livre mercado e reduzindo o papel do Estado. Já na produção, nesta mesma época surge o modelo pós-fordista e o regime de acumulação flexível que permitiram o desenvolvimento de inovações tecnológicas e novos serviços financeiros. Atualmente, Big Techs como Google, Amazon e Microsoft tendo como suporte o capital financeiro expandem seus negócios desenfreadamente por todo o globo, controlando governos e decisões geopolíticas. Segundo Hardt e Negri, não existem mais nações imperialistas liderando o mundo, hoje vivemos sob o domínio do “Império”, um mercado global descentralizado com poder acima dos Estados. Portanto, nesse quesito já vimos que a ideia de grandes monopólios controlando o mundo deixou de ser uma ficção para se tornar um fato.

E o que podemos dizer a respeito da relação entre humanos e máquinas? Nas obras cyberpunks a tecnologia é o principal protagonista, porém com um caráter ambíguo: ao mesmo tempo que proporciona inovações também acaba ocasionando problemas sociais. Esse é um dilema que já enfrentamos nos dias de hoje. A automatização do trabalho, por exemplo, vem gerando debates sociais e econômicos sobre os impactos que as tecnologias de automação e robótica podem causar ao desalocar milhões de trabalhadores de seus empregos. Outro ponto de correlação entre o real e a ficção é a respeito da nossa dependência tecnológica. Assim como podemos observar em nosso mundo contemporâneo os dispositivos tecnológicos cada vez mais presentes em nosso cotidiano, nesses imaginários futuristas a tecnologia toma conta de todos os aspectos da vida, removendo a linha que separa a essência humana do mundo maquínico.

Nos futuros cyberpunks, a tecnologia chegou ao ápice de seu desenvolvimento, mas a sociedade não. O que vemos nas obras são sujeitos errantes que lutam para sobreviver em cidades tomadas pelo caos. Como não observarmos nisso uma semelhança com o nosso presente? Vivemos no fim dos tempos, não somente por causa da pandemia, das crises econômicas e climáticas, do retorno do fascismo etc, mas mais especificamente devido à falta de esperança. Na ambientação noir das obras cyberpunks o que transparece são pessoas resignadas que passam pela vida em meio aos escombros de um futuro que nos prometeu tudo e não nos deixou nada. O que é isso se não a fábula capitalista da produtividade, do mérito e do crescimento econômico. É isso que no fim das contas o gênero cyberpunk quer nos mostrar, o preço que a sociedade paga pelo desenfreado desenvolvimento do capital em nome do avanço tecnológico.

Mas longe de mim desejar neste texto promover uma ideia contra a tecnologia. Acredito em seu potencial emancipatório, desde que ela seja controlada pelos trabalhadores e não por meia dúzia de bilionários. Contudo, precisamos nos ater para o risco da tecnologia dominar nossa essência, assim como Heidegger nos alerta em seu ensaio A questão da técnica de 1954 sobre o perigo da tecnologia não causar apenas destruição em massa, mas também de nos levar a uma regressão do humano, de transformar o homem em uma simples máquina. Portanto, é hora de abandonarmos os ideais instrumentalizados e libertarmos as consciências reificadas, pois hoje já vivemos em tempos cyberpunks, mas o futuro ainda cabe a nós decidir.

“We think too much and feel too little. More than machinery we need humanity.”
Charlie Chaplin, O Grande Ditador

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