O problema do amor ao trabalho

Ideia Crítica
4 min readOct 15, 2021

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O discurso do “faça o que você ama” vem mobilizando cada vez mais a sociedade, ofertando com ele a flexibilização de horas, o home office, as frutas grátis no escritório, etc. É um discurso persuasivo que vem para atender as demandas contemporâneas e seus exigentes desejos. Dois no topo dessa agenda são a liberdade e a felicidade, que no âmbito profissional podem ser entendidos como a fuga das rotinas de trabalhos sem sentido onde as horas se arrastam. E quem não gostaria de fugir disso, não é verdade? Quem não gostaria de passar o dia fazendo aquilo que lhe dá prazer, de esbanjar cotidianamente o amor pela sua profissão? Obviamente, todos nós; porém, a coisa não é tão simples assim.

Ao invés de criar condições para a liberdade e a felicidade do indivíduo, a realidade desse discurso é que ele mobiliza a subjetividade do trabalhador para aprisioná-lo ainda mais na ideologia neoliberal. Essa tática de controle e docilização dos corpos cruza a linha entre trabalho e individualidade, levando o sujeito a buscar no trabalho o sentido de sua vida. Enquanto as palestras motivacionais sobre empreendedorismo e desenvolvimento profissional e pessoal aumentam, os aumentos de salários e as greves diminuem e são vistos com desaprovação. Afinal, por que você está exigindo mais, você não ama o que você faz?

Todo esse discurso que segue a máxima “faça o que você ama e jamais trabalhe um dia na vida” não passa de uma ilusão, uma forma de esconder a subordinação e a exploração diante dos trabalhadores. É o discurso que você escuta no “seja seu próprio patrão”, “trabalhe de onde você quiser”, etc. Enquanto essas ideias se espalham, a CLT vem sendo cada vez mais negligenciada e os profissionais aceitam trabalhar como pessoas jurídicas negando seus direitos trabalhistas.

Além de tudo isso, esse discurso glamourizado do faça o que você ama que domina cada vez mais a mídia coloca em xeque todas as profissões da sociedade. Ou seja, essa ideia de amor ao trabalho disponível às classes médias e altas atinge também as classes mais baixas, onde as condições de trabalho são mais difíceis e o “amor ao trabalho” fica mais para uma cilada mesmo. Vender esse discurso da felicidade no trabalho num país com tamanha desigualdade social como o Brasil só nos leva ao desencanto, pois é preciso fazer as contas na realidade e ver que não tem lugar para todo mundo nesse simbólico mundo de amor ao trabalho — segundo Marx, nossa liberdade se dá na possibilidade de escolhermos entre alternativas concretas.

Então, o que acontece com essas pessoas que caem no discurso de fazerem o que amam? Muitas delas se deparam com uma enorme frustração, de não prestar pra nada como diria Mark Fisher, pois diante desse mercado que se torna impenetrável como o castelo de Kafka, nos sentimos pequenos e insuficientes por não termos conseguido atingir as expectativas e suplantar a máxima da meritocracia: “Sim, você pode”.

Esse “Sim, você pode” implica liberdade e positividade, valores muito demandados no mundo pós-moderno. Contudo, ao se deparar com uma realidade em que ainda existem limites, o sujeito ao invés de colocar a culpa na sociedade e no sistema, culpa a si mesmo, porque não conseguiu conquistar tudo aquilo que diziam que ele podia. De acordo com Han no livro Sociedade do Cansaço, a positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever. Ao chegarmos ao limite da produtividade na sociedade disciplinar de Foucault, repleta da negatividade e proibição, passamos para uma sociedade do desempenho, onde no lugar da disciplina existe o projeto de si mesmo, a motivação e a iniciativa. Isso nos leva a uma liberdade coercitiva — o sujeito livre das instâncias dominadoras explora a si mesmo, ele continua disciplinado, só que agora com um nível de produtividade elevado, o qual vive pressionado para manter e do qual se autopune quando não consegue produzir mais. O resultado disso vem sendo os aumentos nos casos de síndrome de burnout, depressão e suicídio.

Ok, agora para deixar tudo bem claro e evitar equívocos. Não há nada de errado com a busca de ascensão social e profissional. Buscar nossa sobrevivência e bem-estar contribuindo com a sociedade através de nossas competências e conhecimentos é um objetivo nobre. Contudo, é preciso romper com a idealização de carreira e de buscar amor no trabalho. Claro que existem pessoas que amam o trabalho, isso é ótimo. Porém, cair no discurso de “você deve amar o seu trabalho” não é saudável, porque infelizmente isso não é uma realidade para todos. Portanto, não estou defendendo uma indiferença ao trabalho, mas apenas convidá-los para um olhar crítico sobre o que está agregado nesse discurso: salários menores, horas extras não remuneradas, disponibilidade 24 horas, menos direitos e por aí vai.

Então, o que fazer? A minha solução seria buscar entender a si mesmo e olhar para aquelas pequenas demandas de nosso dia a dia que nos movem. Ao invés de procuramos profissões dentro do universo simbólico, acredito que devemos olhar para a rotina de determinadas atividades laborais que nos interessam e entender se elas realmente se conciliam com as atividades das quais temos prazer em realizar. É preciso olhar especificamente para esses detalhes que nos excitam e ver se eles estão introjetados na profissão que almejamos. É preciso ignorar o Grande Outro que insiste em apontar o caminho para que você possa construir o seu próprio caminho. A ideia não é que você deva amar o trabalho, mas que possa tirar satisfação dele através da exteriorização de suas habilidades próprias e de suas características únicas, o processo de criar e transformar o mundo.

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