Meridiano de Sangue e a Violência nossa de cada dia.

Ideia Crítica
3 min readMay 16, 2023

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Paisagem do deserto monument valley
“Esse deserto no qual tantos foram subjugados é vasto e exige grandeza de coração mas também é no fim das contas vazio. É impiedoso, é estéril. Sua verdadeira natureza é a pedra.”

Meridiano de Sangue ou O rubor crepuscular no Oeste é uma das obras literárias mais impactantes e intrigantes dos últimos 50 anos. Escrito por Cormac McCarthy e publicado em 1985, o livro retrata a jornada de Kid (o menino) que se junta a gangue de John Glanton na missão de escalpelar índios pela fronteira entre Estados Unidos e México. Em resumo, esse é o enredo de Meridiano de Sangue, um livro que compreende muito bem o espírito norte-americano; porém, para tal feito ele vai muito além de ser um simples faroeste literário.

Meridiano de Sangue é um livro sobre violência, mas não se trata do simples ato de cometer a violência para fazer o mal. McCarthy desconstruiu a visão do velho oeste dos filmes de Hollywood onde tínhamos os bons contra os maus. Aqui a realidade é que o mal não existe, ele configura apenas a ausência do bem. Todos podemos ser bons como podemos ser maus. Ao acompanharmos os personagens pelo desolado deserto passando por igrejas caídas e indivíduos condenados, o sentimento é de estarmos no inferno. Nessa terra sem Deus, tudo é permitido. Mas apesar de testemunharmos a incrível capacidade do homem fazer o mal através das cenas mais perturbadoras, McCarthy nos acalenta com cenas maravilhosas descrevendo a natureza e as paisagens do deserto. Esse contraste entre as belíssimas descrições das paisagens e as atrocidades cometidas pelos personagens resume muito bem o que Cormac McCarthy visa atestar em Meridiano de Sangue: a beleza do mundo frente ao homem em busca de sua destruição.

Segundo Freud, todos os seres humanos possuem uma pulsão de morte, um instinto que busca a destruição, a aniquilação, o retorno ao nada. Em contrapartida, também possuímos uma pulsão de vida, um instinto que busca a preservação, o prazer, a união e os afetos. Esses dois instintos são essenciais para nossa vida e não podem ser separados. Enquanto um pode se sobressair em determinada situação, sempre estará acompanhado do outro em certa quantidade. E quando falamos em violência não é diferente, a realidade é que todos temos em nós o potencial de cometer atos violentos. Ao longo da história, os conflitos de interesses entre os homens sempre foram resolvidos através da violência, primeiro como dominação pela força bruta até culminar na dominação intelectual através do Direito e das leis.

E como não mencionar o juiz Holden, a figura mítica central em Meridiano de Sangue. Definir do que ele é juiz é tão impossível quanto definir o que o juiz Holden representa, mas podemos tentar um chute. Partindo da definição da Bíblia — fonte da qual McCarthy bebeu bastante, principalmente o Livro dos Juízes —, os juízes eram guerreiros e líderes militares escolhidos por Deus para liderar o povo. Mas como já foi abordado, Meridiano de Sangue se passa em uma terra abandonada por Deus. Aqui quem governa é a violência e segundo o juiz, a guerra é Deus. Portanto, o que temos no juiz Holden não é a representação do mal, como muitos interpretam, mas sim uma força dominadora que nos guia para o caminho da destruição e que não pode ser parada — como é dito ao final do livro, Ele diz que nunca vai morrer.

E ele está certo… Quando Freud recebeu a famosa carta de Albert Einstein perguntando Por que a guerra?, ele responde explicando sobre o conceito de pulsão de morte e sobre a natureza violenta do homem, contudo, o mais interessante de sua resposta é a indagação feita a si, a Einstein e a todos os que se indignam com a guerra: “Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? Afinal, parece ser coisa muito natural, parece ter uma base biológica e ser dificilmente evitável na prática (…) Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. E sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude.”

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